quarta-feira, 4 de junho de 2014

E aí?

"Choveu no molhado".

Reportagem, superficial,  da Veja Brasília enaltece os poucos moradores com alguma capacidade financeira privilegiada e não se aprofunda na realidade dos Setores Habitacionais Sol Nascente e Pôr do Sol.  "Choveu no molhado".


Leia a matéria:

Expansão fora de controle
Originadas da grilagem de terras, as favelas Sol Nascente e Pôr do Sol estão entre as maiores do país. Se continuarem a crescer no ritmo atual, terão 1 milhão de habitantes em quinze anos

O lado mais pobre de Ceilândia: os dois assentamentos surgiram na década de 90, mas, sem fiscalização, ampliaram suas áreas nos anos 2000 (Foto: Roberto Castro)

por Lilian Tahan e Ullisses Campbell

José Goudim Carneiro é maranhense de uma família de sete irmãos. Órfão de pai desde pequeno, passou a conjugar o verbo trabalhar na primeira pessoa muito cedo. Quebrava pedra até o dia em que se mudou para São Paulo e conseguiu emprego como técnico de telefonia. A vida confortável só conheceu quando migrou para o Distrito Federal, nos anos 70. Foi funcionário por trinta anos da extinta Telebrasília e, depois, enveredou para o sindicalismo. Mas não é esse o lastro de sua atual prosperidade. Goudim fez seu pé-de-meia abrindo as portas de um aconchegante hotel-fazenda, com privilegiada vista para o entardecer. As instalações têm piscina, sauna, cascata, mesa de sinuca, fliperama, pesque-pague, além de suítes equipadas com ar-condicionado e TV. Um luxo, não fosse a localização. Com o singelo nome de Preguiça, o rancho faz parte da comunidade Sol Nascente, em Ceilândia, a 35 quilômetros do Plano Piloto — e é uma das raras exceções em meio a um cenário onde a miséria predomina. Trata-se de um dos endereços mais precários e violentos do DF e, ao lado da vizinha Pôr do Sol, figura entre as cinco favelas mais populosas do Brasil. Com casebres a perder de vista, o bolsão de pobreza surgiu no início dos anos 1990 do parcelamento de chácaras que pertenciam à Fazenda Guariroba. Duas décadas depois, pode se tornar a próxima região administrativa da capital.

Sem nenhum traço de planejamento urbano, esse complexo de quase 20 000 casas cresce de maneira desordenada, formando um imenso cinturão de pobreza a pouca distância de uma das maiores rendas per capita do país, o Lago Sul. Contraste replicado dentro das favelas, onde o aprazível hotel de Goudim é vizinho a dezenas de casas sem reboco, em ruas com esgoto a céu aberto. Tudo falta ali: posto de saúde, escola, asfalto, coleta de lixo, opções de lazer e cultura. Vista de cima, como na foto que ilustra as páginas de abertura desta reportagem, a região é quase toda ocupada por casebres — uma tendência que está longe de estancar. Segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), as duas favelas somavam 78 912 moradores em 2013. A mesma pesquisa indicava que, em 2011, um total de 68 121 pessoas residia no mesmo setor. Ou seja, ao ano, houve um crescimento populacional de 7,6%, ritmo alucinante se comparado à taxa do DF (2,3%) e à do Brasil (0,9%) no mesmo período. Se essa batida continuar, a situação tende a piorar em pouco mais de uma década. De acordo com uma projeção feita pelo professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília Frederico Flósculo, o quadrante formado por Ceilândia, Samambaia, Santo Antônio e Águas Lindas pode ser todo ocupado e virar uma megafavela com 1 milhão de habitantes até 2030. “Esses dois sóis estão bem próximos ao principal eixo de urbanização do Distrito Federal e são o começo do futuro de uma Brasília favelizada”, alerta o especialista em urbanismo.

Os dois lados da favela
Fora de casa, falta de estrutura. Dentro, alguns itens confortáveis 

Esgoto a céu aberto:só 6% das casas têm rede de tratamento (Foto: Michael Melo)
José Goudim: pioneiro ostenta um rancho turístico de 22 hectares (Foto: Roberto Castro)
Aldenes e os filhos: eles usam fossa séptica, mas a TV é a cabo (Foto: Roberto Castro)
Simone em sua piscina: rateio com os vizinhos para asfaltar a rua que chega a sua casa (Foto: Michael Melo)
Ilda e Jaime de Oliveira: 1 000 reais de aluguel da TIM para abrigar uma torre de celular (Foto: Roberto Castro)
Essa multiplicação só é possível graças a dois fenômenos que andam de mãos dadas aqui no DF, a invasão de terras públicas e a persistente inação das autoridades responsáveis. A poucos metros de onde o governo ergueu um outdoor avisando que grilagem é crime, faixas, cartazes e muros anunciam lotes à venda em Sol Nascente e Pôr do Sol. Em larga medida, um retrato fiel da pobreza e da desordem que imperam no país. Quase a metade dos moradores dali veio de outros estados, com forte presença de maranhenses, piauienses, baianos e goianos. A maior parte foi parar na invasão à procura de emprego ou acompanhando parentes. E quase sempre encontraram o que vieram buscar. Praticamente 50% da população adulta do complexo tem uma atividade e cumpre jornada como pedreiro, empregada doméstica ou atendente de serviços gerais no Plano Piloto, em Taguatinga e em Ceilândia. Os salários acompanham o nível de escolaridade. São baixos. A renda média mensal per capita é de 468 reais. No Lago Sul, ganham-se 5 420 reais. Sem delegacia no lugar, a criminalidade é o que prospera. Tráfico de drogas e brigas de gangue nas escolas são ocorrências comuns. “Tenho alunos que vêm para as aulas armados com faca”, queixa-se Magda da Silva, diretora em uma das duas escolas do complexo. O portão da unidade de ensino ainda exibe as marcas de balas disparadas durante uma briga entre adolescentes. Sem telefone nem viatura alguma, os dois postos de polícia da região contribuem pouco para amenizar esse quadro.

Ilegalidade à vista: mesmo advertindo em outdoor, o governo não consegue intimidar os especuladores, que afixam placas de vende-se por todos os lugares (Fotos: Roberto Castro / Michael Melo)
Com o sonho da casa própria resolvido na marra, milhares de moradores agora esperam e cobram do governo acesso a serviços básicos. Embora com redes precárias, energia e água existem praticamente para todos, mas o esgoto tratado só atende 6% da população. A coleta de lixo também é restrita — mesmo assim, ela depende de as pessoas carregarem os sacos até a avenida principal, porque os caminhões não conseguem entrar nas ruelas. De cada dez vias, apenas uma está asfaltada, e, como não há rede para escoamento pluvial, quando chove as ruas inundam. Se os espaços públicos são bagunçados, não é impossível achar, todavia, quem consiga aparelhar a residência. Aldenes Alves, o marido e os três filhos moram em uma casa típica dessa favela, feita de alvenaria, com piso de cerâmica, dois quartos, sala, cozinha e banheiro. A surpresa está nos eletrodomésticos. TV a cabo (50 polegadas), computador, impressora e som de alta potência incrementam o cômodo principal. Na garagem, um Nissan Xterra divide espaço com a antena de sinal para internet que garante o sustento da família. “Tudo o que a gente conseguiu foi aqui no Sol Nascente”, diz Aldenes. Há uma década, ela deixou de morar com a sogra em Ceilândia e comprou um lote no assentamento. Pagou o terreno com um Opala. Apesar de ter melhorado de vida, a dona de casa reclama da falta de infraestrutura. “A gente tem de se virar com a fossa, que dá cheiro ruim e é perigosa para a saúde”, diz. Há quem já tenha desistido de reclamar do governo. Simone Bezerra se cotizou com outros vizinhos e, juntos, compraram asfalto para a rua onde moram. Foi a própria comunidade que estendeu os fios elétricos nos postes para ter luz dentro de casa. “Este lugar ainda será um endereço nobre”, acredita a enfermeira do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), que ganhou um lote de 500 metros quadrados do pai há dez anos. No espaço, construiu até piscina.

Em um script comum no país, só depois que as duas favelas chegaram às dimensões de uma cidade de porte médio, o Poder Público passou a enxergá-las. No ano de 2009, o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) previu a organização espacial dos setores. A iniciativa contou inclusive com empréstimos internacionais e um aporte de 220 milhões de reais da União para a viabilização de equipamentos públicos. Devido às intempéries políticas, que encurtaram os governos em 2009 e 2010, o projeto ficou parado e só foi retomado há três anos. A promessa agora é que, até o fim de 2014, 3 600 famílias recebam os títulos de propriedade da terra, pilar da legalização. Apenas grupos com baixa renda e histórico de ocupação de mais de cinco anos terão direito aos certificados. Os demais precisarão negociar a compra dos lotes com a Terracap. “Esse é um processo sem volta. Não é possível tratar essas comunidades como um apêndice de Ceilândia. Tudo caminha para que Sol Nascente e Pôr do Sol se tornem uma nova região administrativa do Distrito Federal”, diz Osvaldo Russo, secretário de Desenvolvimento Social. Seu colega da Secretaria de Ordem Pública, Nelson Müller, adverte: “Os que tentarem novas investidas podem saber que vamos derrubar”. Segundo ele, de janeiro de 2011 ao último dia 22, foram realizadas no local 505 operações para retirar 1 756 invasões. “Essa é uma das áreas mais vigiadas do DF”, afirma. Imagine se não fosse.

Fonte: VEJA Brasilia/Cidade

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